E-CALCULO: UM E-CURSO DE MATEMÁTICA
MARIA CRISTINA BONOMI BARUFI

Departamento de Matemática do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, SP-BRASIL.
E-mail:crisb@ime.usp.br

Neste artigo apresentamos o site e-calculo, desenvolvido como suporte ao curso do primeiro ano de Licenciatura em Matemática do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP). A produção e uso do site criou novas e promissoras perspectivas relativas à expansão dos limites de sala de aula, além de permitir aos alunos uma forma mais independente de construir seu conhecimento matemático em nível superior.


1. Introdução

Este trabalho é o fruto de um projeto apoiado pela Pró-Reitoria de Graduação da Universidade de São Paulo e desenvolvido em parceria com a equipe técnica do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.
Trata-se da criação de um site para apoio a disciplinas regulares do primeiro ano do Curso de Licenciatura em Matemática do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo. Especificamente, essas disciplinas são as de Cálculo Diferencial e Integral e de Laboratório de Matemática, ambas com duração de dois semestres letivos.
O curso de Licenciatura em Matemática tem por objetivo a formação de professores de Matemática para a Escola Básica, dos níveis Fundamental e Médio, cujos estudantes se situam na faixa etária de 11-18 anos.
Diante da complexidade dessa tarefa, a formação dos futuros professores tem sido objeto de estudo e preocupações especiais no Departamento de Matemática do IME-USP.

2. A rede hipertextual

De um modo geral, a comunicação estabelecida na Internet, rede mundial de computadores, está se tornando essencial para uns, uma rica descoberta para outros, enquanto que, para alguns ainda constitui uma interrogação. As comunidades virtuais estabelecem-se a partir de interesses; a proximidade física não é mais essencial, sequer necessária. Apesar de fisicamente "não-presente", uma comunidade virtual está repleta de paixões e de projetos, de conflitos e de amizades. Para Pierre Lévy [1995], a virtualização reinventa uma cultura nômade, não por uma volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas fazendo surgir um meio de interações sociais onde as relações se reconfiguram com um mínimo de inércia.
Não se trata mais de discutir ou defender a existência de cursos presenciais ou virtuais, em paralelo ou não. Trata-se muito mais de potencializar a utilização de um novo espaço, talvez nem mais tão novo, que pode se tornar extremamente profícuo em qualquer sistema educacional. É uma outra maneira de buscar e viabilizar a construção do conhecimento, de maneira mais autônoma e independente, num novo ambiente, onde os movimentos e as interações são diferentes e obedecem a novos modelos.
Na verdade, é o reconhecimento de que o universo no qual trafegam o conhecimento e as mudanças no saber foi ampliado, atingiu outro patamar e está disponível de uma forma que tende a ser cada vez mais igualitária, tornando a informação democraticamente acessível.
Trata-se, pois, de descobrir maneiras de utilizar esse novo espaço, através de novas estratégias de ensino, pesquisadas e desenvolvidas em ambiente didático seja de competência, seja de criatividade.
Abre-se um novo campo de atuação, com enfoque no seu uso. Como afirma Edward Burger, professor de Matemática no Williams College, em recente reportagem publicada no The New York Times Magazine, I just want to teach in the most powerful way I can. If it's technology, that's great. If it's crayon, that's great, too. Nesse âmbito, o papel do professor adquire uma outra dimensão: ele não é mais aquele que simplesmente transmite o conhecimento congelado, mas sim aquele que orienta os estudantes, permitindo que eles possam trabalhar num ritmo que respeita muito mais a própria individualidade, levando mais ou menos tempo, dependendo de cada um ou de cada grupo que passa a se constituir a partir da troca de idéias e busca coletiva de soluções a problemas comuns.
A escrita, como adianta P. Lévy [1995] cava uma distância entre o saber e seu sujeito. A passagem da escrita para a imprensa, com a conseqüente disseminação e socialização do saber, também gerou perplexidade e insegurança. Para Lévy [1997] efetivamente, a impressão transformou de maneira radical o dispositivo de comunicação no grupo dos letrados. ... Um processo cumulativo, que iria levar à explosão do saber, é engatilhado. Entretanto, a informática parece re-encenar, em algumas décadas, o destino da escrita: usada primeiro para cálculos, estatísticas, a gestão mais prosaica dos homens e das coisas, tornou-se rapidamente uma mídia de comunicação de massa, ainda mais geral, talvez, que a escrita manuscrita ou a impressão, pois também permite processar e difundir o som e a imagem enquanto tais.
Nesse sentido, a criação de hipertextos, ultrapassa de longe os textos convencionais, lineares, nos quais, segundo Lévy [1995] ler consiste em hierarquizar, selecionar, esquematizar, construir uma rede semântica e integrar idéias adquiridas a uma memória, então as técnicas digitais de hipertextualização e de navegação constituem de fato uma espécie de virtualização técnica ou de exteriorização dos processos de leitura... Como se a virtualização contemporânea realizasse o devir do texto.
O hipertexto explode em miríades de notícias cuja ausência de homogeneidade traz novas perspectivas para a construção do conhecimento pelo aluno/usuário. Deste modo, os microcomputadores abriram um novo leque de possibilidades quando examinamos as inúmeras simulações que podem ser realizadas e os questionamentos que podem e precisam ser estabelecidos. A formulação de perguntas, segundo Bachelard, é fundamental para a produção de conhecimento, que sempre é a resposta a uma pergunta.

3. O site e-calculo

O objetivo principal do projeto foi a criação de um ambiente interativo multimídia para o ensino de Matemática superior, especificamente para o acompanhamento de disciplinas regulares ministradas para alunos ingressantes na Universidade.
Os diversos anos de experiência com o ensino de Cálculo Diferencial e Integral e a elaboração da Tese de Doutorado envolvendo o mesmo tema, foram fundamentais para a existência de uma clareza suficiente a respeito do site que pretendíamos desenvolver. Evidentemente, não iria se tratar de mais um livro texto, embora eletrônico, porque disponível na Internet. A análise de um grande número de livros didáticos de Cálculo, normalmente adotados pelos professores, forneceu subsídios para entender a maneira pela qual os autores realizam a negociação e a construção dos significados. Isso nos permitiu enfrentar a tarefa de uma forma bastante consciente e cuidadosa.
Uma preocupação esteve presente de modo essencial: o estabelecimento de uma ponte com a Matemática normalmente trabalhada na Escola Básica. Assim, o tratamento dado ao tema Funções Elementares pretendeu estabelecer justamente essa ligação. De fato, as funções elementares, em geral, são estudadas no Ensino Médio. No site elas foram todas apresentadas segundo um enfoque importante para o Cálculo, sem pressupor um conhecimento prévio por parte dos alunos, que, normalmente trazem algumas regras memorizadas a respeito, sem significado.
Além disso, uma questão que mereceu um cuidado todo especial é o fato de ser importante apresentar os conceitos de uma maneira tal que se garantisse o convencimento do estudante quanto à sua necessidade e pertinência. Mas também foi necessário apresentar uma certa formalização, a fim de tornar possível a percepção da maneira pela qual a Matemática vai sendo construída, constituindo um corpo de conhecimento articulado e consistente.
Evidentemente, a construção da rede hipertextual, com seus inúmeros links, animações e applets, tem exigido um grande empenho na busca da melhor maneira de estabelecer a negociação dos significados, a fim de possibilitar a construção de conhecimento significativo por parte dos estudantes que constituem o público alvo.
Num universo virtual, a construção de links elimina a linearidade do texto, a natural estrutura presente nos livros didáticos e, ao contrário, cria movimento e a possibilidade de trazer as referências sempre próximas, quando necessário, construindo uma rede semântica, integrando os assuntos abordados a uma memória que pode ser tornada presente a todo instante. Além disso, os applets possibilitam a simulação e a interação do estudante/usuário, no contexto que está sendo trabalhado.
Através do forum, é possível fazer mais questionamentos e colocar novos problemas para os alunos, provocando-os e estimulando-os. Aí os alunos colocam suas dúvidas, discutindo-as entre si e com o professor. Dessa forma possibilita-se a criação de comunidades de aprendizagem, que podem ser virtuais ou não, enquanto grupos que têm como objetivo a discussão de idéias e problemas comuns, buscando sua solução.
A perspectiva de utilização de e-learning spaces parece ser cada vez mais próxima em nosso ambiente universitário, abrindo possivelmente novas perspectivas para um ajuste no que diz respeito ao acesso à Universidade Pública, tornando-a efetivamente mais próxima de seu público-alvo.
Na esfera educacional a colocação de problemas instigadores e interessantes está se sobrepondo às antigas maneiras de transmissão pura e simples de conteúdos. Nesse aspecto, a utilização do microcomputador é um campo que abre, sem dúvida, inúmeras possibilidades, principalmente devido às suas características intrínsecas que permitem simulações e variadas interações. Os estudantes podem utilizar uma ferramenta muito flexível e adaptável ao perfil individual de cada um. As possibilidades de desenvolver a própria criatividade são inúmeras. Num e-learning space, o conhecimento, necessariamente, deixa de ser visto numa perspectiva estática e passa a ser encarado como processo.
Atualmente é quase impossível fazer ciência, engenharia e matemática sem ferramentas computacionais. O mesmo pode ser dito com relação à aprendizagem desses assuntos. As vantagens na utilização do microcomputador principalmente com ferramentas exploratórias são enormes. Atribui-se um novo status epistemológico aos objetos matemáticos - pois se possibilita uma certa aproximação dos materiais concretos, ajudando os estudantes na construção de raciocínios formais - dando-lhes mesmo a idéia de estar usando o estado da arte das ferramentas científicas para aprender e simular ciência e matemática, medindo, controlando, comunicando.
Segundo Papert, declaradamente comprometido com a opção democrática, ... a Informática, em todas as suas diversas manifestações, está oferecendo aos Inovadores novas oportunidades para criar alternativas. A pergunta que permanece é: em essência, a educação pública mostrará o caminho ou, como na maioria das coisas, a mudança primeiro melhorará as vidas dos filhos dos ricos e poderosos e apenas lentamente e com um certo grau de esforço entrará nas vidas dos filhos do resto de nós? A escola continuará a impor a todos um único modo de saber ou se adaptará a um pluralismo epistemológico?

4. Resultados

Muito embora o site, atualmente em fase de conclusão, não tenha sido idealizado para ser um curso a distância, tendo em vista o que havia sido planejado, poderá ser utilizado como tal, dada a disponibilização do forum, sendo possível inclusive ampliar o espaço de comunicação através de chat.
Como site de apoio ele mostrou ser muito útil aos alunos que lamentaram o fato de algum conteúdo não estar eventualmente ainda disponível quando o referido assunto estava sendo trabalhado em sala de aula.
O que foi possível observar é que no contexto do curso universitário onde as disciplinas normalmente são desenvolvidas de maneira bastante tradicional, os alunos, considerados na totalidade, têm uma certa dificuldade em participar do forum. Aliás, essa dificuldade é semelhante àquela que muitos apresentam quando precisam se expor ou participar ativamente do trabalho em sala de aula, seja individualmente como em pequenos grupos. Entretanto, ao final do primeiro ano, dada a proposta de trabalho em sala de aula, essa questão, no nível presencial, está bastante resolvida e a maioria dos alunos aprendeu a se envolver.
No caso da participação no forum, alguns estudantes, com bastante naturalidade, passaram a interagir. A possibilidade de colocar dúvidas e de responder a questões propostas foi assumida por eles. Fomos surpreendidos, inclusive, com a criação espontânea de um e-group através do qual oito alunos passaram a interagir em suas discussões a respeito de Cálculo, ampliando suas possibilidades de diálogo, sem encontros presenciais.
Por outro lado e, lamentavelmente, outros alunos simplesmente ignoraram a existência do site e do forum, o que sinaliza a necessidade de insistir e estimular essa participação. As reais perspectivas de melhoria nos sistemas de conexão nos levam a crer que propostas desse tipo serão facilitadas e se tornarão mais viáveis. Dado o pioneirismo dentro do Departamento de Matemática do IME-USP, acreditamos que através da persistência e dos ajustes necessários, brevemente o desenvolvimento de cursos nesses moldes será reconhecido institucionalmente e terá a aprovação da totalidade dos alunos.

5. Conclusão

Com o desenvolvimento desse projeto, aprendemos que é possível criar uma rede hipertextual para um assunto que envolve a Matemática superior. Vencemos diversas dificuldades. Aprendemos que é possível sair da proposta linear, envolvendo um esquema de pré-requisitos, normalmente presente nos livros didáticos de Cálculo Diferencial e Integral.
Estamos conscientes que ainda temos diversos aspectos que podem ser melhorados ou ampliados, alguns externos, bem como outros relativos ao conteúdo que foi desenvolvido. Entretanto, sempre existe a possibilidade de transformar ou mesmo ampliar a rede que foi estabelecida, dada a mobilidade criada.
Entretanto, temos clareza de que estamos apresentando aos nossos alunos, professores de um futuro bastante próximo e, em certo sentido, previsível em alguns aspectos, algo novo e possível. Esses professores saberão que é viável trabalhar num ambiente que ultrapassa os limites da sala de aula, utilizando um universo que possibilita interações não necessariamente presenciais, que permite a construção do conhecimento de forma mais autônoma e independente.
Segundo Najmanovich, há comenzado a gestarse una cultura que no piensa el universo como un reloj sino como "archipiélagos de orden en un mar de caos": la cultura de la complejidad. La civilización que creyó en las certezas definitivas, en el conocimiento absoluto y el progreso permanente se derrumba y están abriéndose paso nuevos modos de pensar, de sentir, de actuar y vivir en el mundo.
No mundo em constante e cada vez mais rápida transformação, a busca por soluções aos grandes problemas que afligem a humanidade tem-se tornado uma necessidade também progressivamente maior. Nesse sentido, é imprescindível formar pessoas cada vez mais criativas e críticas. A escola em qualquer nível deve preparar o ser humano para exercer o monopólio da atividade criativa.

6. Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer à equipe do CEPA pela parceria e competência tecnológica demonstrada na construção desse trabalho.


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